sábado, 11 de setembro de 2010

estilos

uma baleia não tem estilo. o mar precisa de um toque de pescoço abandonado como o lábio precisa do fumo de uma página e o estado lateral da coxa de um traço alto carregado. não pode ser água a correr, só uma estreita película de margem que alinha postiça ligeiramente ao lado do desenho. o estilo é o oposto de um rio. um quadro urbano que oscila drogado. pode ser uma mão aberta se for lançada em pedra dramática e o século lhe cair bem mas nunca uma linha espontânea de bicho a escorrer gordura no equador. uma carruagem de metro, sem olhos lá dentro, só flash e cabelos parados, ora digitais ora retro milenares a lembrar o design inatingível das árvores. o prego do quadro range à noite e o som faz lembrar o do esguicho de uma baleia que se aproxima. baleias gordas, velhas, de bata branca e papel de rascunho para pintar maiorias. às vezes o estilo espreita e vê quadros a baloiçar, o vento e os pregos, e cose-se, com uma linha de detalhe, pelo céu da boca, pela espinha do meio das pernas à cara à nuca e um nó. o nó de uma linha individual lançada precariamente ao mar para suster o sublime estrondo da baleia.

primeiro poema

dei-te uns dados de papel para te divertires com a tua ciência. queria dar-te uma história que te ouvisse e e não fugisse quando a abraças mas não calhou. calhaste tu, um riso a quebrar o universo. se soubesses como te amo a ti e aos teus montinhos de plasticina. queria apanhar todo o olhar que deixaste escorregar. como poderia ter imaginado olhos? enfeitei-te com música e se pudesse dava-te uma árvore mais simples. não podia prever que te irias dividir. milhões de olhos para fora unidos dois a dois. desculpa a criação ser tão espontânea. pensei que te deixasses ir ao calor da tua estrela, dei-te um espaço calmo que te ajudasse a expandir. porque foste dividir, como te lembraste de contar se eras infinito? as outras formas à tua volta, não foram experiências anteriores, são variedade de ti para amares quando sentires saudade. desculpa-me o tempo meu amor. quis dar-te mares, estrelas e corações a pulsar em vez de lagos parados. precisei do tempo para o movimento. como pudeste pensar que te mataria? vi os teus deuses e o teu hábito infinito, a tua luta, e quero morrer contigo sempre que uma parte de ti julga que vai morrer. mas não podia mostrar-te a dor de uma eternidade suspensa. tenho visto os teus padrões e como vais começando a abraçar-te entre ti. cada dia que passa sei que descobres uma nova ligação e os teus olhos já rodam ligeiramente para dentro. choro muito sempre que falas em mim, mesmo que seja por acaso, numa daquelas tuas variáveis aleatórias assustadas. nunca me hei-de esquecer da mecânica quântica meu amor. foi o teu primeiro poema.

O estilo



Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?

Herberto Helder " Os passos em volta"